segunda-feira, 26 de março de 2012

António Tabucchi. Errante narrativa do desassossego

António Tabucchi. Errante narrativa do desassossego

Por Maria Ramos Silva, publicado em 26 Mar 2012 - 17:33 | 


O escritor luso italiano Antonio Tabucchi, morreu ontem, em Lisboa, aos 68 anos, vítima de cancro.

Conquistado por duas geografias, habitou um território sem fronteiras, essa súmula de todos os lugares a que chamou “a minha mala de livros”, bagagem formadora do carácter de um “homem taciturno mas de trato cordial e directo”, cujo corte do bigode aliviou o seu “aspecto severo”. Em 2008, em entrevista soberba à revista Campus, da Universidade de Murcia, Pascual Vera comparava-o a uma figura de um quadro de Greco, um Quixote enxuto “tão sentencioso como Sancho Pança”.

As evocações colhem. “As personagens acabam por assemelhar-se ao autor”, admitia Tabucchi, italiano “adoptivamente português”, fascinado por Fernando Pessoa, autor de “uma comédia humana cujos personagens são poetas”, artífice de alteridades como aquelas esculpidas por Cervantes, Shakespeare ou Balzac.
A 1 de Novembro de 2011, o CCB reservou um dia de homenagem ao “mais português dos escritores europeus”, cujas ficções “exploram um universo em que os acasos e as coincidências assumem proporções metafísicas, e em que o gosto literário pelos enigmas contribui para criar narrativas densas, misteriosas e inquietantes”.

Nacionalidades Estabelecido em Portugal há vários anos, um vínculo formalizado pela concessão de nacionalidade portuguesa em 2004, Tabucchi nasceu em Pisa, a 23 de Setembro de 1943, e cresceu na localidade vizinha de Vecchiano, em casa dos avós maternos. Nos tempos de estudante universitário, viajou pela Europa no encalço dos autores que descobrira na biblioteca do tio. Numa dessas jornadas, encontrou o poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, num quiosque próximo da Gare de Lyon, em Paris, uma versão em francês traduzida por Pierre Hourcade.

Os versos de um dos heterónimos de Pessoa despertaram um interesse que o acompanharia nas décadas seguintes. No final de 1965, foi o melhor aluno de um curso de português e ganhou uma bolsa de estudo para passar o Verão em Portugal. Em 1969, depois dessa visita a Lisboa que apurou a paixão pela capital do fado, licenciou-se com a tese “Surrealismo em Portugal”.

“Portugal entrou na minha vida quando era estudante de filologia românica e estudava português, espanhol, francês etc. Cheguei a Portugal nos anos 60, que vivia numa ditadura, conheci muita gente, intelectuais, fiz amigos e minha mulher é portuguesa. O amor tem uma certa importância na vida”, recordou em 2002 ao jornal da Mostra, Festival Internacional de Cinema de São Paulo. Alexandre O’Neill, José Cardoso Pires e Fernando Lopes, que lhe filmou a adaptação de “O fio do horizonte”, faziam parte do círculo de amigos de um permanente pensador do mundo, que com eles partilhava a mesa e o anti-salazarismo num país “onde todos vestiam de preto e usavam chapéu”.

Nos anos 70, especializou-se na Escola Normal Superior de Pisa e em 1973 estreou-se como professor de Língua e Literatura Portuguesa. O período coincide com a escrita do seu primeiro romance, “Piazza d’Italia” (1975), um mergulho na História ao sabor dos vencidos; início de uma aventura nas letras orientada até ao final pela mesma bandeira. “A literatura tem hoje o papel que sempre teve: proporcionar uma forma distinta de ver as coisas. A câmara de televisão envia-nos imagens mas é sempre recta, não muda o ângulo. A literatura sim, vai mais além do que somos capazes de ver”, descreveu a Pascual Vera.

Arcaísta confesso, Antonio Tabucchi escrevia em cadernos escolares, rejeitando o computador e a internet. “Prefiro os furos da rede”, confessava o autor, correntemente bilingue, apesar de só ter escrito uma das suas obras directamente em português, “Requiem”. Paralelamente à sua actividade de pesquisa e crítica literária, assinou uma obra notável como ficcionista, de onde se destacam “Donna di Porto Pim” (“A Mulher de Porto Pim”, 1983), “Notturno Indiano” (“Nocturno Indiano”, 1984), “Piccoli Equivoci Senza Importanza” (“Pequenos Equívocos sem Importância”, 1985) e “Sostiene Pereira” (“Afirma Pereira”, 1994). Esta última deu origem ao filme com o mesmo nome, realizado por Roberto Faenza e rodado em Portugal, com Marcello Mastroianni. “Os escritores têm intuições. Sentia-se um ventinho xenófobo e racista na Europa. Então escrevi a história de um anti-herói que consegue fazer não um acto de heroísmo, mas o seu dever de jornalista e está pronto para aceitar as consequências”, recordou em entrevista ao i em Abril de 2010, quando o escritor recebeu Vanda Marques em sua casa, a propósito do livro “Viagens e outras Viagens”.

ENredos Tabucchi foi um contador de histórias que encheram os ecrãs de cinema em cinco ocasiões, assinando ainda duas peças de teatro reunidas em “I dialoghi mancati”. Apreciador de literatura brasileira, traduziu poemas de Carlos Drummond de Andrade e o romance “Zero”, de Ignacio de Loyolla Brandão.

Dono de uma veia polemista saliente, colaborava com o jornal italiano “La Repubblica”. Com um olhar próximo da realidade portuguesa, apoiou Mário Soares, foi candidato pelo Bloco de Esquerda nas eleições europeias e escreveu sobre a luta dos timorenses. Em 2001, um artigo para o jornal francês “Le Monde” e que foi traduzido pelo jornal espanhol “El País” (acerca da liberdade de expressão) valeu-lhe o Prémio de Liberdade de Expressão Josep Maria Llado, na Catalunha, em Espanha.

“As dúvidas são como manchas numa camisa. Gosto de camisas com manchas. Quando me dão uma camisa demasiado limpa, completamente branca, fico imediatamente cheio de dúvidas”, dizia o autor de “Una camicia piena di Macchie” (1999), que no ano passado cancelou a sua participação na FLIP, Festa Literária Internacional de Paraty, na sequência da decisão tomada pela justiça brasileira sobre o caso de Cesare Battisti, ex-activista da extrema esquerda italiana, condenado por quatro assassinatos nos anos 70, autorizado a permanecer no Brasil.
Apontado por diversas vezes para o Nobel, foi também nomeado para o Man Booker Prize em 2005 e 2009, ano em que correu uma petição lançada pelo jornal “Le Monde”, em solidariedade com o escritor, a quem o presidente do Senado italiano, Renato Schifani, exigia em tribunal a quantia de 1,3 milhões de euros, na sequência de um artigo publicado no jornal “L’Unitá”, onde questionava o passado e os negócios de uma das figuras mais próximas de Sílvio Berlusconi. “Não será fácil desberlusconizar a Itália”, lamentava no “El País” o feroz opositor do então ainda primeiro-ministro do seu país, que mantinha intocável o amor profundo pela terra onde nasceu, cresceu e onde escutou as primeiras histórias da boca dos seus avós.

Tabucchi estava internado no Hospital da Cruz Vermelha, disse à agência Lusa a viúva do escritor, Maria José Lancastre. O funeral decorre na quinta-feira, em Lisboa. A Casa Fernando Pessoa vai realizar no próximo dia 2 de Abril, a partir das 10h30, uma maratona de leitura integral do “Requiem”, que será gravada. Também em Abril será lançado o conjunto de contos “o Tempo Envelhece Depressa”, pela editora Dom Quixote.

“Hoje toda a gente se trata por tu, já deves ter reparado, é uma forma despachada e falsamente confidencial. Eu não gosto, porque é inconveniente... Acho que quando duas pessoas se estimam devem tratar-se por você, é uma forma que revela civilidade e respeito pelo outro”, escreveu em “Tristano Morre”, relido num daqueles dias que põe o tratamento em sentido.

Sem comentários:

Enviar um comentário